Giorgio Agamben – A música suprema. Música e política.

A musa – Pablo Picasso (1935). Em exposição no Centre Pompidou em Paris.


  1. A filosofia só se pode dar hoje como reforma da música. Se chamamos música à experiência da Musa, isto é, da origem e do ter lugar da palavra, então em uma certa sociedade e em um certo tempo a música exprime e governa a relação que os homens têm para com o evento da palavra. Esse evento – isto é, o arquievento que constitui o homem como ser falante – não pode ser dito no interior da linguagem: pode somente ser evocado e rememorado musaicamente ou musicalmente. As musas exprimiam na Grécia essa articulação originária do evento de palavra que, advindo, destina-se e se partilha em novas formas ou modalidades, sem que seja possível para o falante remontar-se para além dele. Essa impossibilidade de aceder ao lugar originário da palavra é a música. Nela se expressa qualquer coisa que na linguagem não pode ser dita. Como é imediatamente evidente quando se faz ou se escuta música, o canto celebra ou lamenta antes de tudo uma impossibilidade de dizer, a impossibilidade – dolorosa ou alegre,hínica ou elegíaca – de aceder ao evento de palavra que constitui o homem como humano.

א          O hino às Musas, que serve de proêmio à Teogonia de Hesíodo[i], mostra que os poetas estão desde há muito tempo conscientes do problema que coloca o início do canto num contexto musaico. A dupla estrutura do proêmio, que repete duas vezes o exórdio (v.1: “Pelas Musas heliconíades comecemos a cantar”; v.36: “Eia! pelas Musas comecemos…”) não é devida tão somente, como sugeriu de forma aguda Paul Friedländer[ii], à necessidade de introduzir o inédito episódio do encontro do poeta com as Musas em uma estruturahínica tradicional em que isso não era absolutamente previsto. Há, para essa repetição inesperada, uma outra e mais significativa razão, que diz respeito à tomada mesma de palavra pela parte do poeta, ou, mais precisamente, à posição da instância enunciativa em um âmbito em que não é claro se ela cabe ao poeta ou às Musas. Decisivos são os vv.22-25, em que, como não deixaram de notar os estudiosos, o discurso ultrapassa bruscamente uma narração em terceira pessoa para atingir uma instância enunciativa que contém o shifter “eu” (uma primeira vez no acusativo – με – e depois, nos versos sucessivos, no dativo – μοι):

           

Elas (as Musas) um dia (ποτε) ensinaram a Hesíodo belo canto

  quando pastoreava ovelhas ao pé do Hélicon divino.

   Esta palavra primeiro () disseram-me (με) as Deusas

           
Trata-se, segundo todas as evidências, de inserir o eu do poeta como sujeito da enunciação em um contexto em que o início do canto pertence incontestavelmente às Musas e é, todavia, proferido pelo poeta:  Мουσάων άφχώμεθα, “pelas Musas comecemos” – ou, melhor, se se tem em conta a forma média e não ativa do verbo: “Das musas é o início, pelas Musas iniciemos e sejamos iniciados”; as Musas, de fato, dizem com vozes aliadas “o presente, o futuro e o passado” e “infatigável flui o som das bocas, suave” (vv.38-40).

            O contraste entre a origem musaica da palavra e a instância subjetiva da enunciação é tão mais forte, visto que todo o resto do hino (e do poema inteiro, salvo a retomada enunciativa por parte do poeta em vv.963-965: “Alegrai agora…”) se refere em forma narrativa ao nascimento das Musas de Mnemosine, que se une por nove noites a Zeus, elenca seus nomes – que, naquele estágio, não correspondiam ainda a um gênero literário determinado (“Clio e Euterpe e Tália e Melpomene / Tersicore e Erato e Polimnia e Urania / e Calíope, a mais ilustre de todas”[iii]) – e descreve sua relação para com os aedos (vv. 94-97: “Pelas Musas e pelo golpeante Apolo / há cantores e citaristas sobre a terra, / […] Feliz é quem as Musas / amam, doce de sua boca flui a voz.”)

            A origem da palavra é musaicamente – isto é, musicalmente – determinada e o sujeito falante – o poeta – deve a cada vez prestar contas à problemática do próprio início. Ainda que a Musa tenha perdido o significado cultural que tinha no mundo antigo, o estatuto da poesia depende ainda hoje do modo pelo qual o poeta sucede em dar forma musical à dificuldade de sua tomada de palavra – de como, isto é, consegue fazer própria uma palavra que não lhe pertence e à qual se limita a emprestar a voz.

2.

            A Musa canta, dá ao homem o canto porque simboliza a impossibilidade para o ser falante de se apropriar integralmente da linguagem de que fez sua morada vital. Essa estranheza marca a distância que separa o canto humano daquele dos outros seres vivos. Há música, o homem não se limita a falar e sente, ao invés disso, a necessidade de cantar porque a linguagem não é a sua voz, porque ele habita na linguagem sem poder dela fazer a sua voz. Cantando, o homem celebra e comemora a voz que não tem mais e que, como ensina o mito das cigarras no Fedro, poderia reencontrar só a custo de deixar de ser homem e se tornar animal (“Quando estas [as Musas] vieram ao mundo, e trouxeram a revelação do canto, alguns homens desse tempo deixaram-se sugestionar de tal maneira por esse canto que, assim embevecidos, se esqueciam de comer e de beber, tendo morrido sem dar por isso! É justamente desses homens que provém a espécie das cigarras…”, 259 b-c[iv]).

            Por isso, à música correspondem necessariamente, ainda antes que as palavras, tonalidades emotivas: equilibrada, corajosa e firme no modo dórico; lamentosa e frouxa no jônio e no lídio (Resp. 398 e – 399 a). E é singular que ainda na obra prima da filosofia do século XX, Ser e Tempo, a abertura originária do homem ao mundo não advenha através do conhecimento racional e da linguagem, mas antes de tudo em uma Stimmung, em uma tonalidade emotiva cuja terminologia mesma remonta à esfera acústica (Stimme é a voz). A Musa – a música – marca a cisão entre o homem e sua linguagem, entre a voz e o logos. A abertura primária ao mundo não é lógica, é musical.

א          Daí a obstinação com que Platão e Aristóteles, mas também teóricos da música como Damon e mesmo os legisladores, afirmam a necessidade de não se separar música e palavra. “O que no canto é linguagem”, argumenta Sócrates na República (398 d), “não difere em nada da linguagem não cantada (μή άδομένου λόγου) e deve conformar-se aos mesmos modelos que ela” e enuncia logo depois com firmeza o teorema segundo o qual “a harmonia e o ritmo devem seguir o discurso (άκολουθείν τώ λογώ)” (ibid.). A formulação mesma, “o que no canto é linguagem”, implica, todavia, que haja nele alguma coisa de irredutível à palavra, assim como a insistência em sancionar a inseparabilidade de ambos traduz a consciência de que a música é eminentemente separável. Exatamente porque a música marca a estranheza do lugar originário da palavra, é perfeitamente compreensível que ela possa tender a exasperar sua própria autonomia frente à linguagem; e todavia, pelas mesmas razões, também compreensível é a preocupação para que não se rompa completamente o nexo que as mantinha ligadas.

            Entre o fim do século V e os primeiros decênios do século IV, assiste-se de fato na Grécia a uma verdadeira e própria revolução dos estilos musicais, ligada aos nomes de Melanippide, Cinesia, Frinide e, sobretudo, Timoteo de Mileto. A fratura entre sistema linguístico e sistema musical se torna cada vez mais irremediável, até que no século III a música termina por predominar decisivamente sobre a palavra. Mas já nos dramas de Eurípedes, um observador atento como Aristófanes podia perceber, fazendo disso a paródia nas Rãs, que a relação de subordinação da melodia com seu suporte métrico no verso se encontrava já subvertida. Na paródia aristofanesca, a multiplicação das notas frente às sílabas é incisivamente expressa através da transformação do verboείλίσσω (virar) em είειειειλίσσω. Em todo caso, malgrado a tenaz resistência dos filósofos, em sua obra sobre a música, Aristóxenes, que era um dos alunos de Aristóteles e criticava as mudanças introduzidas pela nova música, não coloca mais no fundamento do canto a unidade fonemática do pé métrico, mas uma unidade puramente musical, que chama de “tempo primeiro” (κφόνος πφώτοç) e é independente da sílaba.

            Se, no plano da história da música, as críticas dos filósofos (que deveriam se repetir muitos séculos depois com a redescoberta da monodia clássica por parte da Camerata florentina e de Vicenzo Galilei e na peremptória prescrição de Carlo Borromeo: “cantum ita temperari, ut verba intelligerentur”) não podiam parecer senão excessivamente conservadoras, interessa mais aqui a razão profunda dessa sua oposição, razão da qual eles mesmos não eram sempre conscientes. Se a música, como hoje parece acontecer, rompe para com sua necessária relação com a palavra, isso significa, por um lado, que ela perde consciencia de sua natureza musaica (isto é, de seu situar-se no lugar originário da palavra) e, por outro, que o homem falante esquece que seu ser já sempre musicalmente disposto deve constitutivamente lidar com a impossibilidade de aceder ao lugar musaico da palavra. Homo canens e homo loquens dividem suas vias e perdem a memória da relação que os vinculava à Musa.

3.

            Se o acesso à palavra é, nesse sentido, musaicamente determinado, compreende-se que, para os gregos, o nexo entre música e política fosse tão evidente que Platão e Aristóteles trataram de questões musicais somente em suas obras consagradas à política. A relação daquilo que eles chamavam μουσική (que compreendia a poesia, a música em sentido próprio e a dança) com a política era tão estreita que, na República, Platão pode subscrever o aforisma de Damon segundo o qual “não se pode transformar os modos musicais sem se transformar as leis fundamentais da cidade” (424 c). Os homens se reúnem e organizam a constituição de sua cidade através da linguagem, mas a experiência da linguagem – visto não ser possível agarrar e padronizar sua origem – é, por sua vez, já sempre musicalmente condicionada. A não-fundamentação do λόγος funda o primado da música e faz com que todo discurso seja já sempre musaicamente acordado. Por isso, os homens de cada tempo são mais ou menos conscientemente educados e dispostos politicamente através da música, ainda antes que através das tradições e preceitos que se transmitem por meio da língua. Os gregos sabiam perfeitamente isso que nós fingimos ignorar, isto é, que é possível manipular e controlar uma sociedade somente através da linguagem, mas antes de tudo através da música. Assim como o mais eficaz no comando do oficial é, para o soldado, o toque da trombeta ou o rufar do tambor, em cada âmbito e antes de cada discurso, os sentimentos e os estados de ânimo que precedem a ação e o pensamento são determinados e orientados musicalmente. Nesse sentido, o estatuto da música (incluindo nessa terminação toda a esfera que imprecisamente definimos com o termo “arte”) define a condição política de uma determinada sociedade melhor e antes que qualquer outro índice e, se se quiser mudar verdadeiramente o ordenamento de uma cidade, é antes de tudo necessário reformar a música. A música cativa que invade hoje – a todo instante e em todos os lugares – as nossas cidades são inseparáveis da política cativa que as governa.

א          É significativo que a Política de Aristóteles se conclua com um verdadeiro e próprio tratado sobre a música – ou, melhor, sobre a importância da música para a educação política dos cidadãos. Aristóteles começa na verdade com a declaração de que se ocupará da música não como divertimento (παιδιά), mas como parte essencial da educação (παιδεία), visto ter ela por fim a virtude: “como a ginástica produz uma certa qualidade do corpo, também a música produz um certo ethos” (1339 a, 24). O motivo central da concessão aristotélica à música é a influência que esta exerce sobre a alma: “É evidente que nós somos afetados e transformados de um certo modo pelos diversos gêneros de música, como, especialmente, as melodias do Olimpo. É opinião comum que elas deixem a alma entusiasmada (ποιεί τάς ψυχάς ένθουσιαστικάς) e o entusiasmo é uma paixão (πάθος) do ethos relativa à alma. Todos, escutando as imitações (musicais), graças ao ritmo e à melodia entram em um estado de ânimo empático ((γίγνονται συμπαθείς), até mesmo na ausência de palavras” (1340 a, 5-11). Isso acontece, explica Aristóteles, porque os ritmos e as melodias contêm imagens (όμοιώματα) e imitações (μιμήματα) da ira e da clemência, da coragem, da prudência e de outras qualidades éticas. Por isso, quando os escutamos a alma é afetada de formas diversas em correspondência a cada um dos modos musicais: de modo “lamentoso e forçoso” no mixolídio, em um estado de ânimo “equilibrado (μέσως) e mais firme” no dórico, “entusiasmado” no frígio (1340 b, 1-5). Ele aceita assim a classificação das melodias em éticas, práticas e entusiasmadas e recomenda para a educação dos jovens o modo dórico, sendo ele “mais firme” (στασιμώτερον) e de caráter viril (άνδρείον, 1342 b 14). Como havia já feito Platão, Aristóteles se refere aqui a uma antiga tradição, que identificava o significado político da música em sua capacidade de ordenar a alma (ou, ao contrário, de excitar nela confusão). As fontes nos informam que, no século VII a.C., quando Esparta se encontrava em uma situação de discordância civil, o oráculo sugeriu chamar o “cantor de Lesbo” Terpandro, que, com seu canto, restituiu ordem à cidade. O mesmo se dizia de Estesicoro no que tange às batalhas intestinas na cidade de Locri.

4.      

Com Platão, a filosofia se afirma como crítica e superação do ordenamento musical da polis ateniense. Tal ordenamento, personificado no rapsodo Ion, que se encontra possuído pela Musa como um anel de metal que é atraído por uma calamita, implica a impossibilidade de dar razão aos próprios saberes e ações, de “pensa-los”. “Essa pedra (a calamita) não só atrai os anéis de ferro, mas também infunde neles a capacidade de fazer aquilo que faz a pedra, isto é, atrair outros anéis, de modo que se produzirá uma grande corrente de anéis presos uns aos outros, para cada um dos quais essa capacidade depende da pedra. Do mesmo modo, também a Musa dota alguns homens de inspiração divina e através deles se solda uma corrente de outros homens igualmente entusiasmados […] o espectador não é mais que o último anel […] o anel do meio é você, o rapsodo, enquanto que o primeiro é o poeta mesmo […] e um poeta se atrela a uma certa Musa, um outro a uma outra e em tal caso dizemos que está possuído […] na verdade, você não diz o que diz de Homero por arte e ciência, mas por uma sorte divina (θεία μοίρα) […]” (Plat. Ion. 533 d – 534 c).

            Contrariamente à παιδεια [educação] musaica, a reivindicação da filosofia como “a verdadeira Musa” (Resp. 548 b 8) e “a música suprema” (Phaid. 61 a) significa a tentativa de remontar para lá da inspiração em direção àquele evento de palavra, cujo limiar está guardado e bloqueado pela Musa. Enquanto os poetas, os rapsodos e, de um modo mais geral, cada homem virtuoso age por uma θεία μοίρα [inspiração divina], um destino divino de que não se pode dar conta, trata-se de fundar os discursos e as ações em um lugar mais originário da inspiração musaica e de sua μοίρα.

            Por isso, na República (499 d), Platão pode definir a filosofia como αύτή ή Мούσα, a Musa mesma (ou a ideia da Musa – αύτός seguido do artigo é o termo técnico para exprimir a ideia). Aqui está em questão o lugar próprio da filosofia: este coincide com aquele da Musa, isto é, com a origem da palavra – é, nesse sentido, necessariamente proemial. Situando-se desse modo no evento originário da linguagem, o filósofo reconduz o homem ao lugar do seu tornar-se humano, a partir do qual somente ele pode se recordar do tempo em que não era ainda homem (Men. 86 a: ό χρόνος ότ’ ούκ ήν άνθρωπος). A filosofia ultrapassa o princípio musaico em direção à memória, de Mnemosine como mãe das Musas e deste modo libera o homem da θεία μοίρα e torna possível o pensamento. O pensamento é, de fato, a dimensão que se abre quando, remontando para lá da inspiração musaica que não o permite conhecer aquilo que diz, o homem se torna de certo modo auctor, isto é, guardião e testemunha das próprias palavras e ações.

א          É decisivo, porém, que, no Fedro, a tarefa filosófica não seja confiada simplesmente a um saber, mas a uma forma especial de mania, ao mesmo tempo afim e diversa das outras. Essa quarta espécie de mania, na verdade – a mania erótica – não é homogênea às outras três (a profética, a teléstica e a poética), mas delas se distingue essencialmente por duas características. Ela está, fundamentalmente, conjugada ao automovimento da alma (αύτοκίνητον, 245 c), ao seu não ser movida por outro e ao seu ser, por isso, imortal; é, além disso, uma operação da memória, que recorda aquilo que a alma viu em seu voo divino (“esta é uma reminiscência (άνάμνησις) daquilo que a alma viu uma vez…”, 249 c) e é essa anamnese que define sua natureza (“esse é o ponto de chegada de todo discurso sobre a quarta mania, quando alguém vendo qualquer coisa de bela se recorda do verdadeiro belo […]”, 249 d). Essas duas características a opõe pontualmente às outras formas de mania, em que o princípio de movimento é exterior (no caso da loucura poética, a Musa) e a inspiração não está preparada para remontar com a memória àquilo que a determina e faz falar. Aquilo que inspira aqui não são mais as Musas, mas sua mãe, Mnemosine. Platão inverte a inspiração em memória, e essa inversão da θεία μοίρα  – do destino – em memória define seu gesto filosófico.

            Enquanto mania que move e inspira a si mesma, a mania filosófica (porque é disso que se trata: “Só a mente do filósofo usa as asas”, 249 c) é, por assim dizer, uma mania da mania, uma mania que tem por objeto a mania ou inspiração mesma e atinge, portanto, o lugar mesmo do princípio musaico. Quando, no fim da Mnemone (99 e – 100 b), Sócrates afirma que a virtude política não é natural (Φύσει) nem transmissível por ensinamento (διδακτόν), mas se produz por uma θεία μοίρα sem consciência, e que por isso os políticos não são capazes de comunica-la aos outros cidadãos, ele apresenta implicitamente a filosofia como uma coisa que, não por sorte divina ou ciência, é capaz de produzir nas almas a virtude política. Mas isso só pode significar que ela se situa no lugar da Musa e a substitui.

            Walter Otto observou justamente, em outro lugar, que “a voz que precede a palavra humana pertence ao ser mesmo das coisas, como uma revelação divina que o deixa vir à luz em sua essência e glória”[v]. A palavra que a Musa dá ao poeta provém das coisas mesmas e a Musa não é, nesse sentido, mais que o desvelar-se e comunicar-se do ser. Por isso as figurações mais antigas da Musa, como a estupenda Melpomene no Museu Nacional do Palácio Massimo, em Roma, a apresentam simplesmente como uma garota em sua plenitude ninfal. Remontando até o princípio musaico da palavra, o filósofo deve medir-se não somente com algo linguístico, mas também e principalmente com o ser mesmo que a palavra revela.

5.

            Se a música está constitutivamente ligada à experiência dos limites da linguagem e se, vice-versa, a experiência dos limites da linguagem – e, com essa, a política – é musicalmente condicionada, então uma análise da situação da música no nosso tempo deve partir da constatação de que é precisamente essa experiência dos limites musaicos que nela acaba por faltar. A linguagem se dá hoje como tagarelice que nunca se choca com o próprio limite e parece ter perdido toda consciência do seu íntimo nexo com o que não se pode dizer, isto é, com o tempo em que o homem não era ainda falante. A uma linguagem sem margens nem fronteiras corresponde uma música não mais musaicamente acordada; e a uma música que voltou as costas à própria origem, uma política sem consistência nem lugar. Onde tudo parece indiferentemente se poder dizer, perde-se o canto e, com isso, as tonalidades emotivas que musaicamente o articulam. A nossa sociedade – onde a música parece penetrar freneticamente em todo lugar – é, na verdade, a primeira comunidade humana não musaicamente (ou amusaicamente) acordada. A sensação de depressão e apatia generalizada não faz mais que registrar a perda do nexo musaico com a linguagem, travestindo como uma síndrome médica o eclipse da política que daí resultou. Isso significa que o nexo musaico, que perdeu sua relação com os limites da linguagem, produz não mais uma θεία μοίρα, mas uma espécie de missão ou inspiração em branco, que não se articula mais segundo a pluralidade dos conteúdos musicais, mas que por assim dizer roda no vazio. Imemoradas de sua solidariedade originária, linguagem e música dividem seus destinos e permanecem, todavia, unidas em uma mesma vacuidade.

א          É nesse sentido que a filosofia pode se dar hoje tão somente como reforma da música. Porque o eclipse da política faz par com a perda da experiência do musaico, a tarefa política é hoje consitutivamente uma tarefa poética, frente à qual é necessário que artistas e filósofos unam suas forças. Os homens políticos atuais não são capazes de pensar porque tanto sua linguagem quanto sua música rodam amusaicamente no vazio. Se chamamos pensamento o espaço que se abre cada vez que acedemos à experiência do princípio musaico da palavra, então é com a incapacidade de pensar do nosso tempo que devemos nos medir. E se, segundo sugere Hannah Arendt, o pensamento coincide com a capacidade de interromper o fluxo insensato das frases e dos sons, travar esse fluxo para restitui-lo ao seu lugar musaico é hoje a tarefa filosófica por excelência.


[i]     HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Tradução de Jaa Torrano. 3ªed. São Paulo: Iluminuras, 1995. (N.T.)

[ii]    FRIEDLÄNDER, Paul. Das Proömium von Hesiods Theogonie. “Hermes”, 49. pp. 14-16. 1974.

[iii]    Aqui se traduziu do texto de Agamben, visto que no texto de Torrano optou-se por nomear as Musas a partir dos gêneros literários. No texto de Torrano: “Glória, Alegria, Festa, Dançarina, / Alegra-coro, Amorosa, Hinária, Celeste / e Belavoz, que dentre todas vem à frente.” (N.T.)

[iv]   PLATÃO. Fedro ou da Beleza. Tradução de Pinharanda Gomes. 6ªed. Lisboa: Guimarães Editores, 2000. (N.T.) 

[v]    Aqui traduziu-se diretamente do texto de Agamben. O livro de Otto de que fala Agamben na passagem é: OTTO, Walter. Die Musen und der göttliche Ursprung des Singens und Sagens. Diederichs, Düsseldorf. 1954. (N.T.)


Autor: Giorgio Agamben

Tradução: Pedro Rodrigues Naccarato

Revisão: Wesley Costa