O direito de votar em eleições não é sinal suficiente de democracia

Shikha Patnaik, 9 de dezembro de 2018

Imagem que simula a tela de seleção de personagens de um jogo de luta. No topo, há a frase em inglês "Choose your fighter" ("Escolha seu lutador"). Na parte inferior, uma barra com o nome de um jogo fictício ("Kapital Kombat - Deception") à esquerda. À direita desta barra, há o valor de créditos que o jogador fictício desse jogo possui (9999 créditos). 

No centro da imagem, há quatro imagens repetidas de uma estátua do deus grego Hermes (deus, dentre outras coisas, do comércio), vestidos, como manequins, com roupas e acessórios que representam quatro candidatos das eleições presidenciais de 2018 Haddad, Ciro, Amoêdo e Bolsonaro.

A estátua-manequim que representa Haddad tem camisa vermelho-escura, e um chapéu de cangaceiro com o símbolo do Partido dos Trabalhadores (estrela vermelha com a sigla PT no meio) em seu centro.

A estátua-manequim representando Ciro está vestida de terno preto, com camisa social branca e gravata vermelha. Em seu peito, há um broche com o símbolo do PDT (uma mão segurando uma rosa, símbolo internacional da Social-Democracia). Uma rosa de cores entre o púrpura e o rosa adorna o cabelo da estátua.

A estátua-manequim que representa Amoêdo está vestida de camisa pólo laranja com o símbolo de seu partido (NOVO): a letra n, inclinada, com traços laterais que simultam movimento.

A última estátua-manequim, a que representa Bolsonaro, está vestida com terno e gravata preta, camisa social branca, e adornada por três elementos: um broche com o desenho de uma laranja, representando o escândalo Queiroz; uma boina militar laranja, fazendo referência ao mesmo fato; e a famosa "mamadeira de piroca", uma mamadeira com um bico em formato de pênis que foi o conteúdo de uma notícia falsa espalhada durante as eleições de 2018 por apoiadores de Bolsonaro.

Basta ouvir qualquer liberal na internet por algum tempo para perceber que um de seus argumentos mais recorrentes será o de que “países capitalistas são democráticos, e Estados socialistas são ditaduras”— mas será que esta afirmação é verídica? Neste pequeno artigo, Shikha explica didaticamente o caráter ilusório da “democracia” capitalista, cuja maior evidência reside na interferência empresarial em eleições governamentais.

Em todas as conversas que tive com outras pessoas sobre socialismo e Estados socialistas, o argumento invariavelmente feito pelos que são pró-capitalistas, ou por liberais que ainda precisam desenvolver uma compreensão do socialismo, é que os Estados socialistas são ditaduras e não são democracias. Não é culpa deles, já que vivemos em um mundo dominado pelo Norte e pelo Ocidente, e os valores liberais em todo o mundo são moldados por aquilo esses países decidem que devemos defender.

A crença de que a democracia liberal ocidental é a única forma de governo que deve existir está tão profundamente entranhada, que a maior parte das pessoas não conseguem sequer imaginar uma forma alternativa e, portanto, são rápidos em equiparar Estados socialistas com ditaduras reais. Antes que mergulhemos em teorias socialistas, vamos primeiro perguntar a nós mesmos o que queremos dizer com democracia? É nosso único direito votar em políticos e partidos políticos para dentro e fora do poder? Ou seria ela nossa capacidade de tomar decisões em instituições que afetam diretamente nossas vidas?

A ideia de democracia é: se você terá que viver com as consequências das decisões, então você deve poder participar da tomada delas. — Richard d. Wolf (@profwolff) 14 de Setembro de 2012

Se concordarmos com essa definição de democracia, então será que podemos dizer que as democracias liberais ocidentais são realmente democráticas?

Democracia no local de trabalho = Todos afetados pelas decisões (trabalhadores + clientes + suas comunidades) devem participar das decisões do local de trabalho. Uma pessoa, um voto. No capitalismo, apenas proprietários e altos executivos decidem, e isso é o oposto de democracia. — Richard D. Wolf (@profwolff) 14 de Maio de 2018

Então os Estados capitalistas não são autoritários? A democracia pertence apenas às políticas de nível nacional e não ao nosso local de trabalho?

Nós pensamos que temos uma sociedade aberta porque podemos criticar nosso governo, mas a firma onde trabalhamos tem muito mais impacto em nossas vidas, e se você criticá-la publicamente, os donos vão te demitir. A esfera privada ainda é gerida como uma ditadura, por milhares de tiranos mesquinhos. — Existential Comics (@existentialcomics) 14 de Outubro de 2018

Nós precisamos aceitar que o autoritarismo é nossa realidade, independente de nossa sociedade ser capitalista ou socialista. Mas são essas duas formas de autoridade iguais? Vamos dar um passo atrás e entender o que é capitalismo, socialismo e comunismo.

  • Capitalismo: um modo econômico de produção onde os meios de produção — terra, trabalho, tecnologia, infraestrutura, etc — pertencem à classe dominante rica. Os donos de empresas investiram “capital” nas empresas e, portanto, “possuem” o negócio: sua receita, seus lucros e seus empregados. Por que algumas pessoas possuem capital excedente para investir é uma outra história, mas um resumo rápido é que eles roubam riqueza, especificamente o valor excedente do trabalho e da terra, de grupos mais fracos através da exploração da classe trabalhadora e da colonização de países tropicais.

Numa sociedade capitalista, o poder de tomar decisões é concentrado em uma minoria rica; e quem controla os meios de produção controla a sociedade. Eis aqui a causa autoritarismo que enfrentamos todo dia no trabalho. Em sua própria natureza, o capitalismo requer que a sociedade seja dividida em diferentes classes econômicas, e um Estado que permita a opressão da classe trabalhadora a fim de beneficiar os dominantes.

  • Comunismo: Um modo econômico de produção no qual os meios de produção pertencem aos trabalhadores, e não à classe dominante. Os trabalhadores fazem a produção e, portanto, a eles devem pertencer os negócios, sua receita e seus lucros. Isto aqui é a verdadeira democracia. Ninguém é dono dos empregados, já que seres humanos não são mercadorias para serem compradas e vendidas para trabalho (é válido lembrar que seres humanos já foram no passado literalmente comprados e vendidos como bens móveis a serem escravizados [chattel slavery, regime no qual seres humanos possuem a categoria jurídica de bens móveis, tal como um cavalo ou um carro]— uma característica distintiva na evolução do capitalismo).

Numa sociedade comunista, o poder de tomar decisões é descentralizado, e já que os meios de produção são controlados coletivamente, não há autoritarismo ou dominação de um grupo sobre outro. De acordo com sua própria natureza, ele requer uma sociedade sem distinções de classe. Comunismo também requer nenhuma governança política da sociedade, como Lenin explica em O Estado e a Revolução.

  • Socialismo: Este é definido de maneiras diferentes por pessoas diferentes, mas irei me ater à definição marxista de socialismo, que é a fase de transição entre o capitalismo e o comunismo, na qual os meios de produção são controlados pelo governo, este representando a classe trabalhadora e não a classe dominante. Socialismo é a fase inferior do comunismo e, portanto, pode ser usado de forma intercambiável com o comunismo.

Socialismo requer um estado autoritário para manter sob controle as revoltas da classe dominante enquanto o Estado trabalha para redistribuir a riqueza, porque é delirante pensar que os ricos estarão contentes em dividir sua riqueza excessiva. (Nota — a “social-democracia” escandinava não é socialismo, mas isso, também, é uma outra discussão.)

Então onde as eleições e os governos figuram nesses modos econômicos de produção?

Para responder isso, precisamos pensar por que os governos existem em primeiro lugar. Formas governamentais existiram ao longo da história moderna, em monarquias e sistemas feudais. A resposta óbvia é que os governos existem para manter a ordem na sociedade, mas então por que a maioria dos governos fracassam em manter a ordem? Por que governos repetidamente falham em dar justiça aos pobres? Por que a pobreza ainda existe? Precisamos realmente ser governados para sempre? Pode existir uma sociedade onde nenhuma forma de autoridade é exercida sobre nós? Não podemos ser livres?

Aqui há um trecho de O Estado e a Revolução, de Lenin, que lança mais luz sobre o propósito do estado:

No século XIX desenvolvia-se, transmitido pela Idade Média, “o poder centralizado do Estado, com os seus órgãos onipresentes: exército permanente, policia, burocracia, clero, magistratura”. Graças ao desenvolvimento do antagonismo de classes entre o Capital e o Trabalho, “o poder do Estado assumiu cada vez mais o caráter de uma força pública organizada para a servidão social, de um instrumento de despotismo de uma classe. […] o poder do Estado torna-se “o grande instrumento nacional da guerra do Capital contra o Trabalho”.

É importante esclarecer que as polícias modernas, como agentes do governo, foram criadas inicialmente não para combater o crime e manter a ordem. A polícia foi criada para proteger a propriedade — a propriedade dos ricos contra os pobres. Por um período de tempo, o papel da luta contra o crime foi dado a polícia, mas na sociedade onde o próprio governo oprime os pobres, é de se admirar que a polícia falhe tão miseravelmente em combater os crimes contra os pobres, mas se ajoelhe de todas maneiras para os ricos donos de negócios?

Capitalismo requer um governo porque o governo é um instrumento de opressão, e numa sociedade em que os capitalistas compram e colocam os políticos no governo, este se torna um bastião das classes dominantes ao invés da classe trabalhadora. Portanto, eleições, o processo de escolher entre partidos políticos, são em essência exercícios sem sentido levando em consideração que os diferentes partidos são todos capitalistas em sua ideologia. Não que um partido não tenha o potencial de mudar mais que outro, mas tais mudanças não são radicais, são reformistas, o que é outra discussão.

Sobre a inutilidade das eleições, aqui há uma citação de Einstein de seu ensaio de 1949, Por que o socialismo:

Capital privado tende a se concentrar em poucas mãos, em parte devido à competição entre os capitalistas, em parte porque o desenvolvimento tecnológico e o crescimento da divisão do trabalho estimulam a formação de unidades de produção maiores, em prejuízo das menores. O resultado desses desenvolvimentos é uma oligarquia do capital privado, cujo enorme poder não pode ser efetivamente controlado sequer por uma sociedade política democraticamente organizada.

Isso é assim porque os membros dos corpos legislativos são selecionados por partidos políticos, que são amplamente financiados, ou influenciados de algum outro modo, por capitalistas privados que, para todos os propósitos práticos, separam o eleitorado da legislatura. A consequência é que os representantes do povo não protegem de fato e de modo suficiente os interesses dos setores menos privilegiados da população. Além disso, nas condições atuais os capitalistas privados inevitavelmente controlam, direta ou indiretamente, as principais fontes de informação (imprensa, rádio, educação). Torna-se assim extremamente difícil para o cidadão individual, e de fato impossível na maioria dos casos, chegar a conclusões objetivas e fazer uso inteligente dos seus direitos políticos.

Aqui há outra citação, do blog de Stephen Gowans, do porquê de as eleições, da maneira que são conduzidas, serem uma falha na democracia:

Os ricos estão interessados na política eleitoral — quando ela segue as suas vontades, como normalmente acontece. Eleições numa sociedade capitalista podem ser dominadas pelo dinheiro, assim como o amplo processo político. Bancos, corporações e investidores majoritários fazem lobby para políticos, financiam campanhas políticas, subornam legisladores com a promessa de trabalhos pós-políticos lucrativos, e moldam o ambiente ideológico através do seu controle da mídia, da criação de think-tanks, da contratação de firmas de relações públicas, e do financiamento de cadeiras na universidade.

Aqueles sem riqueza dificilmente podem competir, exceto, por princípio, ao agrupar seus recursos e torcer para que inclinem a balança para o outro lado contra um inimigo formidável que controla infinitamente mais recursos. A ausência de organização e consciência de classe, no entanto, rotineiramente assegura que isso não aconteça. Além disso, a arena eleitoral canaliza a dissensão em caminhos previsíveis e controláveis, mantendo-a fora das ruas, onde pode se tornar imprevisível e portanto perigosa. Adicionalmente, a oscilação que as corporações, bancos e grupos de investidores exercem nos bastidores é mascarada pelo espetáculo igualitário das eleições. Uma pessoa, um voto. O que poderia ser mais igual?

Outra questão mais importante é perguntar: qual a porcentagem de eleitores qualificados vota realmente?

Até mesmo em uma nação de primeiro-mundo desenvolvida como os Estados Unidos, apenas 50–60% dos eleitores qualificados vota nas eleições presidenciais. Num número mais alto, nas eleições gerais de 2014 na Índia, 66% dos eleitores qualificados votaram. Nas recentes eleições no Brasil, 60% dos eleitores votaram. É importante também lembrar que partidos de direita e extrema-direita ascenderam ao poder nos últimos tempos na Índia, nos Estados Unidos, Hungria, Polônia, Turquia, Egito e nas Filipinas através das eleições, e não através de batalhas de rua com os comunistas. Na verdade, até Adolf Hitler tomou o poder na Alemanha em 1933 através do voto democrático. Então votar nas eleições a nível nacional realmente está ajudando a tornar o mundo em um lugar melhor para os oprimidos e pobres?

O direito ao voto numa sociedade capitalista não é um sinal de democracia, mas sim uma zombaria da democracia. Então são Estados socialistas mais democráticos que estados capitalistas? Como o autoritarismo em diferentes estados socialistas é diferente de estados capitalistas? Continuarei esses assuntos na parte dois deste artigo.


Autora: Shikha Patnaik
Publicado em: 9 de dezembro de 2018
Original: https://socialism-simplified.com/2018/12/09/our-right-to-vote-in-elections-is-not-a-sufficient-measure-of-democracy-part-1/
Tradução: João Nachtigall[Comunidade dos Tradutores Proletários]
Revisão: Eliel Micmás [Comunidade dos Tradutores Proletários]

Arte de capa: Eliel Micmás [Comunidade dos Tradutores Proletários]
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